Por Carolina Altarejo
A notícia foi dada no dia 27 de março: a Federação da Alta-Costura e da Moda cancelou a Semana de Moda Masculina de Paris, que deveria acontecer de 23 a 28 de junho, e a Semana de Alta-Costura, marcada para 5 de julho. Logo, seguiram-se os anúncios das outras três capitais que, em um cenário sem precedentes, passaram a repensar suas formas de apresentação. O Conselho de Moda Britânico foi o primeiro a anunciar a realização das Semanas de Moda digitais de Londres, abrindo espaço para formatos inusitados que incluíam não apenas desfiles, mas talks com os próprios estilistas e diversos outros conteúdos disponibilizados gratuitamente.
A corrida das plataformas digitais
Com o objetivo de criar novas maneiras de mostrar suas coleções e expressar ideias, os grandes designers foram expostos a um mundo – digital – de possibilidades em que não há restrições de tempo ou espaço. Nesse mercado, são as plataformas que se veem postas à disputa pela audiência e hospedagem de grifes que atraem likes de todos os cantos do mundo.
Em maio, a diretora de parcerias de moda do Instagram, Eva Chen, lançou um guia de como realizar desfiles no aplicativo. De acordo com ela, o documento foi desenvolvido para marcas de todos os tamanhos e oferece recomendações que variam de acordo com a abordagem de cada uma. O lançamento ainda vai de encontro com uma nova funcionalidade que permite colocar tags de preço nos produtos para que o usuário realize a compra durante a apresentação. O “see now, buy now” nunca foi tão significativo!
A febre da geração Z também atraiu os designers, que procuram cada vez mais dialogar com os novos consumidores. Na véspera da Semana da Alta-Costura, o diretor criativo da Balmain, Olivier Rousteing, realizou um evento comemorativo da marca em Paris, que foi transmitido exclusivamente no TikTok, enfatizando que as ações das grifes nesse momento pedem não só criatividade, mas visão de mercado.
O desafio, no entanto, foi também uma oportunidade de alavancar marcas que já estavam acostumadas com o formato, como a designer conguesa Mvuemba que, nos últimos oito anos, exibiu todas as suas peças por meios digitais. Em maio, inspirada pela animação 3D, criou uma coleção sem audiência ou modelos, com apenas peças em movimento simulando um desfile físico. De fato, a superação tech da indústria das semanas de moda digitais!
Virada de chave
As limitações impostas pela pandemia, no entanto, resultaram em reflexões sobre o atual cenário da moda. Em carta aberta publicada no WWD, o estilista Giorgio Armani questionou a dinâmica do fast fashion, identificando-o como imoral. “Acho absurdo que, durante o inverno, na boutique, tenha roupas de linho e, durante o verão, casacos de alpaca, pelo simples motivo de que o desejo de compra seja estimulado de forma imediata”, afirmou.
Ele ainda apontou a poluição gerada pelos shows da indústria e foi o primeiro a anunciar a mudança no ritmo das coleções, com lançamentos mais distantes. Logo, o diretor criativo da Gucci, Alessandro Michele, também se posicionou, declarando que a grife fará apenas dois desfiles por ano ao invés de cinco. O mesmo anúncio veio de Michael Kors, que disponibilizará suas coleções nas lojas em datas mais próximas das estações correspondentes. “Eu tenho pensado há tempos que o calendário da moda precisa mudar. É empolgante para mim ver esse diálogo aberto dentro do setor sobre maneiras para desacelerar”, disse o estilista. Já Saint Laurent decidiu se libertar ainda mais do line-up e trabalhar por conta própria. Portanto, a maison focará apenas em apresentações customizadas, que acontecerão segundo timing do estilista Anthony Vaccarello e seus fornecedores.
Contudo, marcas fiéis ao calendário, como as gigantes Chanel e Dior, encaram o digital como limitação temporária e acreditam que o físico é essencial. Em uma declaração à imprensa sobre a apresentação do vídeo surrealista para apresentar – pela primeira vez no digital – a Alta-Costura da Dior, a diretora criativa Maria Grazia Chiuri afirmou que a moda não pode ser vista apenas através de telas. “Não é algo que você só pode ver. Você tem que tocá-la, tem que ver o artesanato, especialmente na alta-costura”, explicou ela.
Já Virginie Viard, diretora criativa da Chanel, mudou totalmente o mood de suas últimas coleções e adotou uma estética maximalista e punk, referenciando os anos 80. De acordo com ela, essa transição foi proposital, porque uma estética silenciosa não seria bem traduzida em uma apresentação digital.
Um novo calendário
Depois de meses em isolamento, as maisons voltaram a trabalhar na França e na Itália com o desejo de repensar tudo, desde a maior reciclagem de materiais, que foi necessária com os fornecedores limitados, até as maneiras de exibir suas coleções. Até então, o calendário fashion tomará a seguinte forma:
Copenhague Fashion Week: ocorrerá presencialmente entre os dias 9 e 12 de agosto. A Dinamarca pôde afrouxar suas medidas de isolamento social ainda em meados de abril, mas a organização do evento ainda investirá no desenvolvimento de uma plataforma digital para conectar marcas aos compradores e imprensa que não puderem comparecer.
Semana de moda de Paris: acontecerá de forma presencial entre 28 de setembro e 6 de outubro, com complemento digital. “O evento cumprirá as recomendações das autoridades públicas”, afirmou a Fédération de la Haute Couture et de la Mode.
Semana de moda de Milão: também será presencial em setembro, mas contará com o apoio do portal on-line da Camera della Moda, que sempre foi promovido como uma plataforma colaborativa destinada a complementar os desfiles.
Ao invés de participar da Semana de Alta-Costura Digital, Giorgio Armani sediará um show sem temporada em janeiro, juntando-se à Chitose Abe, da Sacai, que lançará sua coleção de Couture para Jean Paul Gaultier como seu primeiro designer convidado no ano novo.
Ao contrário da maioria das marcas que pretendem apresentar algo em setembro, Virgil Abloh, da Off-White, fará um hiato até 2021 e apresentará suas coleções de primavera no primeiro mês do ano, que estarão disponíveis para compra já em fevereiro.
Cenário brasileiro
As mudanças não atingiram somente as Semanas de Moda internacionais. Com muitas oficinas mudando seu foco das roupas, sapatos e acessórios para a produção de EPI’s, o mercado brasileiro se viu impossibilitado de seguir o calendário com a oferta de novas coleções, o que foi o ponto de partida para questionamentos ainda maiores.
“Por que temos que seguir esse calendário, maluco das marcas de fast fashion? (…) Nosso produto não é perecível nessa velocidade. Fazemos peças para durar, para serem usadas hoje, amanhã, no próximo ano e assim por diante. Por que as liquidações de inverno precisam acontecer quando inicia-se a estação, julho. As de verão quando os nossos termômetros estão acima dos 30 graus?”, relata o comunicado oficial da ABEST (Associação Brasileira dos Estilistas).
Pensando nisso, em parceria com os principais showrooms do país a Associação estabeleceu novas datas para os lançamentos de coleções:
- Atacado:
Verão: a partir da segunda quinzena de junho até do dia 10 de julho;
Inverno: segunda quinzena de novembro.
- Varejo:
Liquidação inverno: agosto de 2020;
Liquidação verão: fevereiro de 2021.
De fato, a pandemia impactou os planos de todos os mercados de forma universal e se adaptar à nova realidade é um desafio para todos que não querem – ou podem – encarar o isolamento social como um tempo perdido. Por outro lado, a crise do covid-19, de acordo com o bureau de tendências WGSN, foi um grande acelerador dessas mudanças que já estavam programadas para acontecer.
Em uma visão de futuro mais otimista, podemos notar movimentos sustentáveis como o slow fashion sendo realmente considerados por grifes influentes no mercado de luxo. Além disso, a necessidade de explorar as semanas de moda digitais pode ser uma abertura ainda maior de portas para a democratização do mercado de moda, que alimenta o questionamento sobre o verdadeiro significado de “luxo” e sua declarada inacessibilidade.