*por Raíssa Zogbi
“A moda é a armadura para sobreviver à realidade da vida cotidiana”. Ao citar essa frase, Bill Cunningham, paparazzo, fotógrafo de estilo nada comum e retratista revolucionário do street style, mostra sua visão sensível como antropólogo visual da moda do último meio século. Mas, mais do que isso. Mostra, também, um lado da moda que, muitas vezes, é deixado sem análise. Aquele que vai muito além de tendências. Que reflete sobre a sociedade, sobre consumo, sobre cultura.
Assim como em outros períodos conturbados da história, a moda reforça seu lado escapista, de inspirar sonhos e a fuga da realidade.
São 12 meses de isolamento social, mais de 2 milhões de mortes por covid-19 no mundo e tantos outros estragos que a pandemia trouxe e ainda vai trazer.
Nesse cenário, o paradoxo: como falar sobre moda? O que ela reflete sobre o momento? A Alta-Costura, em especial, que segue rigorosos critérios e técnicas exigidos pela Federação da Alta Costura e da Moda (antiga Chambre Syndicale de la Haute Couture), carrega significados em suas propostas e busca refletir os desejos mais reprimidos da sociedade, que nesse desejo momento, clama otimismo e busca por dias melhores.
“No contexto de uma pandemia, que não pode haver festas, como pensar em produção e criação de sentido do uso de roupas de luxo? Nesse sentido, quem vive desse ofício, precisa pensar e estar influenciado pelo contexto”, explica o especialista em estudos da publicidade, moda e consumo e coordenador do curso de Especialização em Estética e Gestão de Moda da Escola de Comunicações e Artes (USP), Eneus Trindade. Acompanhe algumas tendências.
Ouro polido
Brilho, mas nem tanto. Em uma tentativa discreta de trazer o cenário de festas, o dourado ganha uma versão mais sutil, que carrega o significado de busca pelo retorno de uma vida sem isolamento social. “O ouro polido transmite um certo conservadorismo e busca pela tradição. É um tom apontado para uma classe conservadora, de altíssimo luxo, que vai trabalhar as perspectivas da sua tradição no uso de trajes a rigor”, avalia Eneus. Dior, por exemplo, traz referências do universo do tarô para a coleção, que alinhado ao ouro polido, também traduz o desejo e a ânsia pelo futuro.
Ombros marcados
Assim como em outros períodos conturbados da história, em que a moda seguiu por referências clássicas, os ombros marcados apareceram na semana de Alta-Costura. “Essa tendência conota a contenção corporal, é um corpo que tradicionalmente não estaria tão livre. Que segue regras e normas de uma orientação de classe”, conta Eneus. Além disso, dentro de um cenário pandêmico, esse conservadorismo traduzido pela tendência traz a ideia de expressão moral. Traduz certa rigidez e busca pela força para enfrentar os dias difíceis e coragem para buscar momentos melhores.
Protagonismo rosa
O rosa tem se destacado nas últimas temporadas como símbolo da força feminina, não só na Alta-Costura, mas também no Prêt-à-Porter. Mas, não só. É a cor da cortesia, da amabilidade, da suavidade e, portanto, carrega consigo a ideia de escapismo, de fuga da realidade presente. “É uma forma de extravasar, de querer experimentar e até negar o contexto da pandemia”, reforça o professor.
Surrealismo
Uma das vanguardas artísticas europeias que surgiu em Paris no início do século XX, o surrealismo se conecta com a moda e traz elementos de fuga da realidade. “A estética de roupas mais extravagantes e ousadas em termos conceituais de propostas nos cortes, nos babados, nos adereços, traduz essa inovação, esse escapismo e até certo negacionismo frente à pandemia”, afirma Eneus. Schiaparelli, que se tornou um grande ícone da moda a trabalhar com o surrealismo em suas peças, trouxe para a coleção de Alta-Costura Verão 2021 uma versão de óculos que também pode remeter ao desejo de enxergar e vislumbrar algo novo.
Flores na cabeça
Os adereços de cabelo também foram vistos em peso na temporada, com destaque para as coroas de flores. Universalmente, as flores são símbolos da juventude, vitalidade, vida nova, e vitória sobre a morte e, portanto, dizem muito sobre o momento. “Essas tendências reforçam que a moda é um espaço de busca de liberdade e de possibilidade de expressão. A negação desse contexto é, também, uma forma de reconhecê-lo”, finaliza Eneus.