A moda é feita de símbolos, desejos e sensações e poucas coisas são tão sensoriais quanto o alimento. Nos últimos anos, a indústria tem se voltado à gastronomia não só como referência estética, mas como matéria-prima literal. Seja no uso de ingredientes comestíveis em produtos de beleza, seja na construção de tecidos com fibras naturais extraídas de frutas e vegetais, o que se vê é uma revolução em como consumimos com mais sinestesia, mas também com mais consciência. Mas, por outro lado, a capitalização da comida como objeto de desejo pode ser prejudicial? Neste cenário, surgem duas vertentes opostas que dialogam com um mesmo elemento em comum: a comida.
Beleza com gosto de sobremesa: a tendência do food inspired
Glosses com gosto de açaí, balms com cheiro de milkshake e parcerias que unem beleza a fast food. A tendência de transformar alimentos em itens de maquiagem se consolidou como um fenômeno pop nos últimos tempos. O Lip Juice, da Mari Maria Makeup, por exemplo, aposta em aromas e sabores tropicais que remetem a frutas brasileiras como melancia, uva e morango, despertando sensações nostálgicas e afetivas nos consumidores.



A Collab Carmed x Burger King, que trouxe lip balms com cheiro de hambúrguer, surpreendeu por ir além do óbvio e satirizar o próprio apetite da moda por inovações inusitadas. A linha Rhode x Dunkin Donuts, da marca de Hailey Bieber, seguiu o mesmo caminho, unindo estética clean com perfumes açucarados. E a influenciadora Franciny Elke, com o gloss “Lip Bunny”, também se inseriu na tendência com uma coleção divertida, jovem e com identidade sensorial inspirada no chocolate.
Essa estética do “comestível” ativa uma das funções mais primitivas do cérebro: a memória olfativa e gustativa. Usar gloss que lembra sobremesa ou fast food transforma o ato de maquiar-se em um ritual lúdico, que mexe com o prazer imediato. Mas por trás desse movimento está uma estratégia de branding poderosa: criar vínculos emocionais com o consumidor. Sendo assim, diversos especialistas discutem o impacto psicológico dessas ações ao capitalizar as comidas.
Numa era de extrema magreza, profissionais da saúde mental já demonstraram certa preocupação com este fenômeno da beleza. Por transformar um direito básico dos seres humanos em uma estratégia de branding, o alimento passa a ser visto por seu cheiro, cor e identidade visual, tudo menos por seu propósito básico: nutrir. Além disso, especialistas apontam uma tendência ao consumismo ligada a este mercado que a cada ano surge com novas ideias de incorporar alimentos em cosméticos de forma comercial e hendonista.
O outro lado do prato: moda sustentável feita de frutas
Na contramão do apelo sensorial imediato está uma vertente mais silenciosa: o uso de resíduos orgânicos para criar tecidos biodegradáveis e sustentáveis. A moda regenerativa está ganhando força como resposta à crise ambiental e à urgência de diminuir a pegada ecológica do setor têxtil.


Um dos materiais que mais se destaca nesse campo é o Orange Fiber, tecido desenvolvido a partir das cascas de laranja, ricas em celulose e reaproveitadas da indústria de sucos na Sicília, Itália. A inovação já foi utilizada em coleções de marcas como Salvatore Ferragamo e, mais recentemente, na linha da Loewe, consolidando-se como uma alternativa viável e sofisticada ao algodão e ao poliéster. Outras iniciativas similares incluem o Piñatex, feito a partir de folhas de abacaxi, e os tecidos à base de milho e banana, todos biodegradáveis e pensados para substituir fibras derivadas do petróleo.
Além do apelo sustentável, essas matérias-primas têm uma narrativa forte: elas vêm da terra, são resultado de processos naturais e fecham ciclos de produção antes considerados descartáveis. Marcas de luxo que investem nessas inovações estão não só redesenhando o produto, mas também a cadeia produtiva como um todo, do campo à passarela.
Entre o efêmero e o perene: o que está em jogo?
A moda que cheira a comida e a moda que se faz da comida não competem apenas em linguagem visual, elas apontam para dois caminhos distintos do consumo contemporâneo. De um lado, o hedonismo, o consumo rápido, o produto pensado para viralizar. Do outro, a inovação silenciosa, a durabilidade e a necessidade de rever como e do que nossas roupas são feitas.
Transformar alimentos em objetos de desejo, como é visto na estética “foodie” da beleza, também levanta críticas sobre a romantização do consumo desenfreado. Em tempos de insegurança alimentar global, o uso simbólico de alimentos como enfeite ou perfumaria pode parecer deslocado ou até mesmo insensível.
Já os tecidos feitos de resíduos de comida transformam o “lixo” em luxo. E talvez seja exatamente essa a virada de chave: entender que a moda pode nascer da terra, daquilo que sobra, daquilo que antes era invisível. É uma moda mais próxima do planeta, e, por isso mesmo, mais próxima de nós.
No fim, a pergunta que fica é: qual gosto queremos que a moda nos deixe? O açúcar do gloss ou o frescor do tecido natural? A resposta talvez esteja no equilíbrio. O que se veste, seja nos lábios ou no corpo, revela muito sobre como enxerga-se o futuro: passageiro ou sustentável.